No segundo semestre de 2015, quando ingressei no curso de Direito
da Universidade Federal do Ceará, conheci um curso de extensão da FD chamado
SONU, Simulação das Nações Unidas, que é uma iniciativa dos próprios
alunos com o objetivo de simular temas referentes ao Direito Internacional,
ligado aos projetos da Organização das Nações Unidos (ONU). Eu nunca tinha
ouvido falar e, apesar de ter gostado da apresentação do pessoal que foi à
minha sala fazer uma mini simulação, o que mais me chamou a atenção foi um
comitê que seria realizado naquele ano: a Corte Distrital de Jerusalém e o
julgamento de Adolf Eichmann.
Nada parecia à toa. Como se as coisas que nos tocasse, sempre
tivessem um sentido, um significado. Aquela imagem de novo e de novo: um homem,
com a boca torta, sentado no banco dos réus, e o seu olhar angustiante. Depois
que eu o vi, pela primeira vez, essa imagem me acompanha sempre.
A primeira vez foi quando tomei contato com o filme da Hannah
Arendt. Não me lembro o porquê eu quisera tanto assistir esse filme, mas eu
tinha uma vontade enorme de saber do que se tratava, embora não estivesse em
cartaz e nem disponível na internet. Lembro-me, porém, com nitidez, que certo
dia, estava na internet e surgiu-me a ideia: vou procurar o filme da Hannah
Arendt, talvez já tenha o tenham disponibilizado. Quando então me surpreendo
com o que vi: uma sessão do filme na minha cidade! “Quando? Hoje! Que horas?! À
noite! Onde? Perto do centro da cidade... Nossa, somente hoje! ”. Não pensei, simplesmente
fui ao cinema que tinha preço único: cinco reais.
Assisti àquele filme com tanta paixão, que me esqueci que era já
era bem tarde da noite, e que estava sozinha em um lugar esquisito. Mas assisti
e até chorei. Não pelo fim que se deu a vida do personagem, mas porque algo
novo dentro de mim surgira.
Depois disso, não parava de pensar. E era como se, o mundo dos
meus pensamentos, antes tão preocupados com coisas fúteis, abarcasse agora tudo,
e começara a caminhar pelas ruas, falando sozinha: “Por que? Como fora possível
o mal? O que é o ser no mundo? ” Essas questões tomaram forma quando li o livro
de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um
relato sobre a banalidade do mal.
Hannah Arendt propõe que a atitude de um nazista como Eichmann (responsável
pelo transporte dos judeus, porém que nunca houvera matado ninguém), não era
motivado por um ódio antissemita, mas simplesmente porque ele não pensava. Tinha abdicado de sua
capacidade de pensar. Preferia apenas obedecer. Mais: não pensava e não
julgava. Depois disso, essa questão pareceu-me essencial: o que é julgar?
Pedi à minha professora Josianne que me ajudasse a entender essa
questão. Ela se mostrou tão apaixonada quanto eu, mas essa era uma questão
eminentemente filosófica e não histórica. A questão ficava, assim, suspensa.
Quando vi a imagem de Eichmann no vídeo da SONU, todas essas
coisas vieram-me com toda a intensidade que tinham sido guardadas. Quis, em um
primeiro momento, inscrever-me como advogada de defesa, para que eu pudesse
entender esse indivíduo de modo mais profundo, mas, não sei o porquê, recebi um
email dizendo que eu seria juíza da Corte, junto com mais quatro juízes. Estaríamos
representando o Estado de Israel, estaríamos em Israel, em 1961, para julgar o
tão procurado tenente-coronel Adolf Eichmann, na tentativa de julgar
imparcialmente este homem, que embora tenha se figurasse na fala do promotor
como um monstro, representava mais e também para nós, os juízes judeus, como a
personificação da dor infinita sofrida pelo povo judeu.
Seria um julgamento honesto ou uma vingança? Absolvição ou a pena
de morte? Qual o papel dos direitos humanos? Eram as perguntas que eu sempre me
fazia durante os quatro dias de simulação. Mas voltava-me, com o mesmo
questionamento: o que é julgar?
Segundo o parecer dos juízes e segundo as leis de Israel, a sentença,
pareceu-me impecável: a pena de morte. No entanto, o Eichmann volta e meia
retorna. Retorna como um duplo símbolo: para Israel, como um mal radical a ser
lembrado sempre, para que o povo judeu nunca esquecesse dos momentos de horror
do nazismo e, para Hannah Arendt, como um mal banal (esse a meu ver, mais
incômodo e perigoso) que como erva daninha se espalha pelos campos devido à
ausência de reflexão, à negação de colocar-se no lugar do outro, à perca da
tradição, à falta de um julgamento.
“Eu só fiz o
que me mandaram”. Não pode ser essa a frase da
minha vida, não podem me roubar a minha liberdade de atuar, de escolher, de me
desculpar, de tentar de novo. Isso porque o julgamento, para mim, não é somente
algo que você ganha com a experiência (ou como uma menção honrosa), mas é
primeiro algo que se dá no íntimo, no interior.
Além disso, foi um momento de encontrar pessoas muito boas e
generosas que me acolheram com amor e dedicação!
Enfim, foi uma das muitas gratas providências da vida que você só
pode agradecer devolvendo a ela, por meio de uma atitude nova de amor mundi! Não viver uma vida “de burocrata”,
mas uma viver com radicalidade, afinal, Arendt dizia que havia se equivocado em
um ponto muito importante: o mal não seria radical, mas banal; só o bem seria
radical, porque cria raízes profundas, porque transforma.
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